quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

- O que você faria se hoje foi seu ultimo dia?


A voz gritava em minha cabeça, insistente e irritante.

- O que você vai fazer já que hoje é seu ultimo dia?

É só mais um dia, pensei eu, na minha caminhada pelo mesmo caminho que eu fazia todos os dias, em direção à minha universidade.

A voz continuava a gritar na minha cabeça e eu não queria parar de andar ou mesmo desviar meu caminho. Finalmente parei, estendi meu braço e um ônibus estacionou ao meu lado abrindo suas portas. Entrei, paguei minha passagem, passei a roleta e sentei. Passei a cantarolar alguma música que tinha escutado naquela manhã. Mas já não lembrava de letra alguma. Apenas a voz que voltava a gritar na minha mente: O que você vai fazer? Hoje é seu último dia.

O ônibus dobrou em uma rua que não estava previsto para ele dobrar. Olhei ao redor, e os rostos não eram conhecidos, só agora percebi que aquelas não eram as pessoas com quem havia pegado ônibus durante os quatro anos de universidade. Aquelas pessoas que eu via todos os dias ma que eu nunca havia trocado sequer uma palavra. Dessas pessoas que quando você encontra fora do contexto, sente vontade de falar com ela, por achar que já a conhece de alguém lugar, só não sabe de onde. Mesmo essas pessoas, esses coadjuvantes na minha trajetória diária, mesmo eles não eram eles. Tudo estava estranho naquela manha cinza.

O ônibus seguiu seu caminho, e eu percebi que não era ele que eu pretendia ter pegado.

Desci na próxima parada, sem saber muito bem onde eu estava.

A voz voltara a incomodar:

- O que você vai fazer já que hoje é seu ultimo dia?

A rua não tinha asfalto. Era estreita, mal tinha espaço para andar enquanto o ônibus passava pelo lado. Precisei pisar na lama:

- Meu mocassim novo, todo sujo! – Pensei. Mas a voz gritava:

- E daí? Esse é seu ultimo dia!

Continuei andando. À frente, homens e mulheres sentados no chão, em circulo. Eles estavam com as roupas sujas e sobre suas cabeças, uma nuvem de fumaça. Eles me viram chegando. Olharam para mim de forma curiosa. Aproximei-me da roda e sentei ao lado deles. Um deles disse, enquanto tirava meu casaco:

- Você não vai mais precisar disso, não é? – A voz respondia só pra mim:

- Claro que não, esse é seu ultimo dia.

Deixei que ele tirasse o casaco.

Uma moça suja deitou-se no meu colo. Aninhou-se como se fosse dormir. Perguntou:

- Você me deseja?

Fiquei enojada com aquilo, pensei:

- Claro que não, sou uma mulher, sou hétero, só gosto de homens. – Mas a voz rebatia:

- Para que ocultar seus desejos até de você mesmo, se hoje é seu ultimo dia?

Meio desnorteada, me inclinei e beijei-a. Ela segurava a minha cabeça e pressionava contra a dela.

- O que eu estou fazendo? E se esse não for meu ultimo dia coisa nenhuma? Como vou continuar com essa vergonha? O beijo é bom. Se ninguém ficar sabendo, não há porque ter medo. – Pensava eu, enquanto a moça tirava minha blusa, beijava meus seios e me acariciava por debaixo da saia. Acabamos transando ali, no meio da rua. Muitos homens nos olhando, eles não pareciam se importar e nem se agradar com o que estávamos fazendo. Eles continuavam a fumar e manter a nuvem sobre nossas cabeças sempre densa.

O sexo acabou, nos vestimos e eu pequei um daqueles que eu nunca havia me permitido. A sensação de leveza era tanta que eu seria capaz de flutuar, ir até o céu.

Levantei-me, dei um beijo na boa de cada um e continuei a andar.

A paisagem foi mudando depois de um tempo de caminhada.

Havia agora bem mais pessoas circulando, as ruas não eram estreitas e vários carros passavam por ali.

Elas me olhavam de uma forma estranha por eu ter minha roupa rasgada e suja. Ninguém queria chegar perto de mim.

O relógio da igreja soou onze badaladas.

A voz voltou a falar, só que dessa vez foi um sussurro:

- O que você vai fazer já que hoje é seu ultimo dia?

Sentei na calçada. Uma senhora com roupas finas e boa maquiagem parou ao meu lado, me olhou da cabeça aos pés, e virou a cara. Levantei imediatamente:

- Que mulher tola e ignorante é a senhora! Ou a senhora acha que quem é “mau caráter” ladrão vai estar dizendo assim na cara de pau que é ladrão? Claro que não, eles se disfarçam, e pode ser qualquer um, por falar nisso cuidado com esse cara de gravata que está olhando só pra sua bolsa. Certamente vocês podem ficar, namorar, casar, mas no momento em que ele olha pra a sua bolsa da Prada, e não para o seu rosto, dá pra ver exatamente o que ele quer com isso.

A senhora nem virou pra ver quem estava falando. Seguiu seu caminho.

Uma chuva forte e límpida começou a cair. Eu olhava para o céu e a água que lavava meu rosto também lavava minha alga.

Levantei-me e comecei a caminhar pelas ruas, a voz já não me atormentava. Agora conversava comigo amigavelmente:

- Pois é, o que você acha de hoje ser o ultimo dia da sua vida?

Caminhando pelas ruas, disse oi pra todos. Alguns fingiam que me conheciam, outros simplesmente não olhavam, alguns poucos perguntavam se eu estava certa de que eu os conhecia, geralmente os bem idosos.

Em uma praça, a apresentação de um grupo folclórico. Eles ascendiam minha alma.

Dancei, gritei, rebolei, cantei músicas que eu nunca havia ouvido falar. Subi no palco e dancei de várias as formas possíveis...

O dia estava acabando, eu não havia morrido. Havia sobrevivido.

Estava voltando pra asa feliz e bem, eis que um carro qualquer fura o sinal e me tropela. Morri nesse isntante. A voz não falava mais nada.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Pelas ruas


Andava com pressa.

Eram seis da tarde, mais ou menos, mas parecia bem mais tarde.

Estava atrasada...

Andava quase correndo. Olhava sempre pro relógio, e sabia que eu estava atrasada.

As ruas movimentadas e eu mal via quem passava ao lado.

Parei. Tinha que atravessar a rua. O sinal estava aberto para os carros. Esperava ansiosa pela abertura do sinal. Olhava novamente o relógio de pulso. Minhas pernas tremiam. Queria andar logo, eu estava atrasada.

Algo segurou minha perna. Gelei de medo. Receosa, olhei para o chão.

Lá, algo enrolado em trapos podres. Uma mão com pele seca, escura, segurava minha perna. Pelos que um dia poderiam ter sido chamados de cabelos.

Aos poucos, a cabeça daquele ser se levantava, e ia revelando para mim um rosto esquelético, com os olhos grandes e saltados. Na face, nenhuma carne, apenas pele e osso. Não haviam dentes naquela boca escura, com lábios secos e finos. A língua se mexia tentando balbuciar alguma coisa que eu não mal escutava.

Sentia nojo, e queria me livrar daquele ser que segurava minha perna. Meu rosto refletia o terror que vi no filme da tela quente da última segunda-feira. Mas aquele rosto refletia o terror de filmes reais que se passavam todos os dias.

Ele tentou falar algo, mas eu estava com nojo. Ainda ouvi ele dizendo:

- To morrendo, me dá comida.

O sinal se fechou para os carros. Abriu-se pra minha fuga. Caminhei depressa atravessando a rua não querendo olhar para trás, mas não consegui, eu olhei.

Na beira da calçada permaneceu aquele monte de trapos podres que acabara de falar comigo. Na verdade, ele gritava sua fome com todo as suas forças, que não passava de um sussurro.

Eu dizia para mim mesma:

- Eu não podia fazer nada. Ele ia morrer de qualquer forma mesmo. Além do mais, estou atrasada.

Assim consegui afastá-lo do meu pensamento.

Continuei andando, com pressa olhando para o relógio de pulso. Eu estava atrasada.

Cheguei a um prédio grande, com as paredes de vidro argentino. Meu destino. Na frente, uma faixa muito grande em que eu li:

GRANDE FORUM MUNDIAL CONTRA A FOME.

Chorei.