Bam, bam, bam.
A porta era batida com força.
Dentro do muquifo que ele insistia de chamar de apartamento
nenhuma luz acesa, nenhuma janela aberta e o cheiro de mofo estava presente em
casa canto.
Bam, bam, bam.
A porta, novamente. Ela cobrava alguma resposta do interior
da casa. Algum sinal de vida ou da falta dela.
- Eu sei que tu ta aí. Abre essa porta, por favor – Berrava uma
voz já rouca de desespero que vinha do outro lado da porta – abre, eu sei que
tu ta aí.
De dentro da casa podia-se escutar o zumbido da geladeira, o
pingar de uma torneira e o barulho da descarga do vizinho que fazia tremer todo
o encanamento construído na década de 70. Fora isso, não havia nenhum outro som. Nem
mosquitos voando, nem respiração alguma, nem chacoalhar de vento.
“Bam, bam, eu juro, bam bam, se você não abrir, bam bam, eu
vou derrubar essa porta”.
A voz já quase não tinha forças, mas as batidas vinham com
uma energia que vinham da alma.
A porta se abriu de repente. E junto com o seu abrir, uma
entrada esbaforida de um homem magro, moreno, com cabelos grossos e bem
aparados. Ele usava uma blusa listrada de botões totalmente descomposta. A
calça jeans ainda estava no lugar, mas notava-se que assim estava por pura
determinação e garra da própria peça. Respirava fundo. O homem, não a calça.
Este entrou quase caindo sendo engolido pela escuridão e o fedor do muquifo.
Diferente da sua entrada, ele agora dava passos leves e silenciosos.
Se houvesse mais alguém naquele apartamento, poderia ouvir com clareza o
coração do homem moreno batendo a cento e vinte por minuto.
Entrou no quarto como quem entra em uma cela de panteras,
medindo bem onde colocava os pés. Era preciso ter cuidado naquele momento.
Sobre a cama algo que parecia um homem, ou que já tivesse sido um.
A criatura tinha 1,70m de altura e pesava cerca de 53 kg.
Cabelos compridos, descoloridos, desgrenhados. Uma pele amarelada, seca e
murcha. Nos olhos, um misto de cores borradas que em algum momento já fora
maquiagem. No busto, um tomara-que-caia azul cobria duas bolas de silicone
colocadas sobre a pele por algum médico que provavelmente cobrou menos do que
valia a cirurgia. 1 litro e meio de cada lado. Entre as pernas, onde um dia
estivera um pau de 12 cm quando mole e 23 quando duro agora havia sangue, muito
sangue. O sangue encharcava a colcha suja e suada que não era trocada a pelo
menos dois meses.
- Agora você vai me amar? – Olhos arregalados miravam o
homem moreno – Agora você vai me amar, não é?
- O que você fez?
- Fiz você me amar. Agora podemos ser felizes.
- Nunca foi isso que eu quis. Por que você fez isso?
- Você nunca me amou por completo. Me via como uma
aberração. Agora eu sou o que você queria que eu fosse – a voz dos olhos
arregalados começava a falhar.
- Sempre te amei como você era. Você sabe disso. Eu nunca te
pedi pra fazer isso.
- Na boate... – ele precisou parar para respirar – Eu te vi
na boate. Vi você dançando com aquelas mulheres. Vi como você desejava elas.
Você queria o que elas tinham e que eu não tinha.
- Não fala besteira – finalmente o homem moreno teve coragem
de sentar na cama – eu fui mesmo lá na boate e dancei com as mulheres, mas eu
não desejava elas. Eu desejava você – segurando a mão do homem deitado.
- Você me queria. Acredito nisso. Você me queria no corpo
delas – o corpo amarelo sobre a cama parava para respirar – Eu nunca poderia te
dar o que elas podiam.
- Não. – O homem moreno abraçava o amarelo com força. – Eu sempre
desejei só você.
- Não (pausa para respirar) não precisa mentir (outra pausa)
para você mesmo. Eu sei o que você quer (uma longa pausa) e agora eu posso te
dar. – A voz fica fraca – Agora sou (respira com muita dificuldade) eu sou uma
mulher completa.
A voz sumiu. Os olhos arregalados murcharam. O corpo
amoleceu.
A poça de sangue avançava e melou a calça jeans do homem
moreno. Ele não ligou. Ele ficou ali, deitado com aquele corpo magro e sem vida
a noite toda.
Ele não chorou. Nenhuma lágrima sequer.
Aquelas últimas palavras aviam ceifado não uma, mas duas
almas. Uma de uma vida sem um corpo e uma de um corpo sem vida.
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